segunda-feira, 24 de setembro de 2007

SOU REAL

SOU REAL

Fabrício Carpinejar

Em algum momento do meu dia, serei mendigo. Por uma fração de tempo,
serei um indigente e esquecerei de me arrumar, esquecerei de me
produzir, esquecerei de me preocupar em ser visto. Por exemplo, ao
apanhar o jornal. Desço as escadas do prédio, rezando para que nenhum
vizinho abra a porta. Exceto um homem imaginário não é mendigo numa
parte de sua rotina. Exceto um homem imaginário não aparece despojado
num relance.

Ainda em trajes indefinidos, meio cama, meio mesa, olho para a janela do
edifício da frente e percebo uma senhora, bem senhora, de cabelos cinza
e um olhar duro observando o que acontece pela manhã. Quando a descubro,
ela recua e entra. É fatal: recua e entra ao coincidirmos os olhos.
Tenho a impressão de que ela ficaria o dia inteiro naquela posição se
ninguém a descobrisse. Ela se envergonha de estar reparando na vida
alheia, mas não deixa de olhar. Ela quer olhar (por prazer) e fingir que
não olha (para mim). Alimentamos essa relação platônica por cinco anos.
Eu chego, ela sai. Eu saio, ela volta.

Cláudia Moon comentou no meu texto anterior que os homens se apaixonam
por personagens, não mulheres reais. Ela está coberta de razão. No
início do relacionamento, somos como eu e a velha. Fugimos de nos ver,
pois um denuncia a pobreza do outro.

Tentamos segurar o idealismo nos primeiros meses do namoro. Recalcamos a
enxaqueca, a irritação, as contas, nossos pânicos. A alma de mendigo e
os segredos permanecem em cidade próxima até conseguirmos intimidade e
coragem para contar e mostrar quem realmente somos. Apaixonar-se é
ganhar tempo. Temos vergonha do que somos, porque guardamos a impressão
de que não somos apaixonáveis. Apresentamos um terceiro em nosso lugar,
para que esse personagem enfim nos apresente quando chegar a hora de
morar junto. Todo princípio de namoro, um não conhece o outro, mas
versões aproximadas e adaptadas. Há relações que terminam antes do
personagem sair de cena.

Trancamos a realidade no armário e o quarto parece limpo e organizado.
Os apaixonados vivem com as portas trancadas do armário, já reparou
Cláudia?

Não há como despistar por toda a vida. Tantas vezes namorei e não podia
ter dor de barriga. É ridículo. Mas o estômago do apaixonado não pode
funcionar. É um crime ele continuar na ativa, mesmo jantando
desesperadamente. Eu sentado na privada, ela toda sensual na cama lendo
e me esperando. Eu tentando não fazer nenhum barulho. Um pânico.
Tentando não deixar nenhum cheiro. Um pânico. Tentando que a descarga
funcione direitinho. Um pânico. Eu tinha que ser um homem imaginário,
mas era real. Meu estômago é real. O que ela iria pensar se descobrisse
que seu homem ideal é como todos os demais?

O que é real é mais fácil de voltar. Na minha horta, é real que tenha um
espaço para colocar a erva-mate do dia anterior. É real que eu tire os
ossos dos peixes para a minha mulher e os ossos das palavras para meus
filhos. É real que cometa desenganos, que seja rude sem querer. Assim
como é real pedir desculpas envergonhado. É real cobrar quando não tenho
razão. É real que sou chato quando sinto fome. É real que lave os pratos
depois do almoço. É real que faça fofocas e intrigas. É real que não sou
poeta em tempo integral. Que me preocupe se haverá sol amanhã para ligar
a máquina de lavar. É real que tenho meus hábitos e minhas frases
prediletas. A minha é "não acredito que estou em casa", a da minha
esposa é "Gostosa", a do meu filho "é final de semana", a da minha filha
é "fiz uma música".

Sou real. É minha decepção e minha glória. Ser entendido é bem melhor do
que imaginar.

Cansei de ser um homem imaginário. Pode ser a crise dos trinta anos ou
uma crise eterna. Eu diria que sou mendigo grande parte do dia; em
alguns momentos, momentos inspirados, sou rei. É mais honesto para amar.

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