Fabrício Carpinejar
Não compreendo quando o futebol torna-se vestimenta da truculência. Ao 
invés de estender o pano e alcançar com a bandeira a graça sinuosa das 
pipas, arranca-se a flâmula para empregar a madeira como arma. A 
bandeira nasceu para o céu, mas é rebaixada progressivamente ao chão.
Não compreendo que a rivalidade entre gremistas e colorados tenha 
atravessado a fronteira da provocação para o fanatismo terrorista.
Não há diferença nenhuma em quem coloca uma bomba no corpo ou quem 
emprega o corpo para explodir os outros. Futebol não é uma causa 
religiosa, não é uma causa nacionalista, não é uma causa separatista. 
Futebol é um esporte. Haverá trabalho no dia seguinte.
Não compreendo que assassinatos possam ocorrer entre torcidas 
organizadas pelo simples motivo da vítima ser colorada ou gremista. E 
que espancamentos tenham como pretexto fora do campo o fato de alguém 
estar usando vermelho ou azul, branco e preto. Não entendo essa 
normalidade de não contar mais com a possibilidade de torcer no campo 
adversário.
Eu levo meu filho de cinco anos para o estádio e desejo que ele ame seu 
time mais do que odeie qualquer rival. Não ensinarei meu filho a odiar.
É muita covardia usar a paixão de uma torcida para cometer atrocidades. 
É muita covardia mobilizar a força retrógrada do bando quando um 
torcedor está sozinho e desarmado.
Isso não é futebol, é crime. Não importa que seja no estádio ou na rua, 
é crime.
Não é mais questão de paz, é questão de justiça.
Sou colorado, faço piadas, toco flauta, mas nunca parti para a briga 
porque respeito os gremistas. Eles são como eu. Iguais em sua fé e 
esperança de que um título venha para recompensar a fidelidade. Iguais, 
nem melhores, nem piores. Sofrem como eu. Amam como eu. Brincam como eu.
Sem os gremistas do outro lado, nunca absorveria as derrotas. Os 
gremistas transformam a dor da derrota colorada em humor. Na 
segunda-feira e quinta-feira no emprego, gremistas estarão me esperando 
para rir daquilo que considerava sério, trágico e fatal, e logo percebo 
que foi mais um jogo de futebol, não o último, e sigo minha vida mais leve.
A gozação dos gremistas, assim como a dos colorados, é terapêutica, 
porque nos possibilita diminuir a gravidade das derrotas e aumentar o 
entusiasmo das vitórias. Cada um tem suas razões, e ninguém tem a 
palavra final.
È um despropósito um colorado tenta converter um gremista e vice-versa.
Ambos os times cresceram para alcançar o outro. Os três títulos 
nacionais do Inter na década de 70 resultaram nos títulos nacionais e no 
Mundial do Grêmio nos anos 80. O Mundial do Grêmio na década de 80 
desencadeou o Mundial do Inter em 2006. São raras as cidades com dois 
times campeões do mundo. A concorrência estimulou a criatividade e a 
superação dos limites regionais.
Não é caso de pregar tolerância. Tolerância é para quem não tem 
respeito. Respeito se ensina em casa.
Sou de uma família padrão em que só a mãe não tem time, para não 
denunciar sua preferência aos filhos. Mãe é igual a comentarista 
esportivo, não diz seu time de coração para não entregar de bandeja seu 
filho predileto (mas desconfio que ela é gremista). O pai e dois irmãos 
torcem pelo Grêmio e eu e a minha irmã pelo Inter. É uma residência que 
sai gritando pela chaminé. Explique-me: como posso odiar meus irmãos? Ou 
alguém acha que não sofri com os "secadores" na própria sala? Ou alguém 
acha que não tive que segurar a raiva quando escutava o trio narrando o 
gol adversário? Faz favor, eu convivi com meus medos e frustrações, meus 
recalques e dissabores, até reconhecer que a cidade não era dividida 
entre os gremistas e os colorados, a cidade é multiplicada.
Reconheço no futebol meu melhor amigo. Queria ser jogador, é claro, 
quando menino. Queria ser Paulo Roberto Falcão. Nunca pedi um autógrafo 
a ele por não saber o que falar - ainda não decorei o discurso. Seu 
jeito de jogar sem olhar para as chuteiras não me condicionou a jogar 
bem, mas agora danço melhor. Ao menos, não olho para meus pés. Era um 
menino retraído, feio e que falava errado. A bola foi minha companhia na 
infância. Seu cheiro de terra e asfalto é camada sempiterna em minhas 
mãos. Curtida, o gomo descolando pelo uso tal língua de cão, o estômago 
da câmara pulando pra fora. Ela diminuiu minha solidão, ajudou a fazer 
turma, favoreceu o surgimento de namoradas.
Futebol é amor.
Precisamos de mais colorados e gremistas sadios, menos colorados e 
gremistas doentes. Que o futebol seja a cura das moléstias, não morte 
cerebral. E que inicie no Gre-Nal deste domingo, às 18h10.
Publicado no jornal ZERO HORA
Página 11, Opinião, Porto Alegre (RS), 16/09/2007
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