segunda-feira, 24 de setembro de 2007

O PAI POETA, MAIS PERTO DA CRIANÇA

Na véspera do dia dos pais, uma dica de leitura: nos poemas de "Meu
Filho, Minha Filha", Fabrício Carpinejar oferece sua versão para a
aventura de ser pai e de ser filho no século 21

Meu Filho, Minha Filha (Bertrand Brasil, 144 páginas, R$ 28), o livro
mais recente de Fabrício Carpinejar, passeia pela parentalidade, esse
caminho de se tornar pai e mãe. Não o faz com intenção, não premedita.

Faz poesia simplesmente, e é aí que o texto se parentaliza. Na primeira
estrofe, canta: "Meu filho, meu filho / volto a te recolher deitado / no
azulejo frio". E é assim, criando o cenário de sons como esses, que a
aventura de pai (ou mãe) inaugura-se. Porque desconfiamos, já com fortes
suspeitas, de que começamos a ser sob a forma de um apego. Que é feito
de desejo e olhar, mas logo vem a linguagem provar que estamos separados
e nos inunda de assonâncias (frio e filho) e aliterações (filho e frio)
e silêncios entrecortados pela música. A linguagem quer restabelecer o
calor. Precisamos ser ponte de prosódia com mãe (ou pai) para ser.
Tivemos de ser música um dia, portanto, poesia. Meu Filho, Minha Filha é
poesia desde o começo, na musicalidade de cada verso, mas também no
livro como um todo, que retoma o estilo do autor, adepto do poema longo.
Ser pai, ser mãe é longo. E é ritmo como o de cada poema ali impresso,
sobretudo, na intercalação constante de um poema para o filho (Meu Filho
Comigo) e outro para a filha (Minha Filha Sem Mim).

Ser pai, ser mãe já estaria desenhado nessa aparente falta de
significado, amparada pela melodia, como é o começo de uma vida de filho
ou pai. Mas como reconhece o autor, em um de seus versos, não fomos
feitos com a perfeição do cavalo; já no primeiro ano dessa vida,
começamos a balbuciar, desesperadamente, em busca de sentidos.

Meu Filho, Minha Filha não o toma com intenção. Mas vai, a cada página,
ritmando sentidos do que hoje se pensa e se expressa para o trajeto de
tornar-se pai e mãe. Poucos sons depois de seu começo, encontramos os
versos lapidares: "Não há água benta na bacia, apenas a sede de uma
família /que se espalhou por medo." Cantando, Carpinejar encontra uma
verdade que enxergamos no cotidiano de quem ouve pais e filhos dentro e
fora de nós: encontrar o filho é encontrar o filho que fomos, é
reencontrar-se com o bem e o mal do que (não) passou. O passado sai de
seu lugar e, à beira desse futuro, tudo é presente. A psicanalista
Monique Bydlowski chama esse trajeto de transparência psíquica. Porque
nada nos retira tanto do opaco ou das defesas do que um filho. Esse
filho, essa filha que recebem desse pai o olhar, a empatia, a palavra,
filtros para os dentes de um passado, sempre disposto a morder afiado e
pontiagudo. A mesma transparência psíquica que se escreve mais adiante:
"És meu filho e o pai que não tive, /ou o filho que ainda não nasceu".
Sem digestão de passado, a poesia tranca, mas aqui ela digere e flui
como as vidas que destrancam em quem se propõe a cantar.

As mordidas doem menos se houve o que há em Meu Filho, Minha Filha:
olhar, empatia, palavra. O resultado é imagem, metáfora, poesia aos
borbotões como em uma vida bem amada e expressada. Um exemplo: "Meu
filho, meu filho, /suave e manso filho, de cílios maiores /do que a
ponta dos dedos..." O psicanalista Serge Lebovici chama isso de empatia
metaforizante. Fomos feitos, enfim, para a acolhida e, acolhidos,
criamos. Esse é o livro de um pai que acolhe filho e filha e jamais será
abandonado pelo símbolo.

Meu Filho, Minha Filha aproxima-se ainda mais do que é ser pai e ser mãe
no século 21. Porque o amor de que fala não é o do século 19,
idealizado, trágico ou romântico. Ou o do 20, acomodado em suas velhas
formas. O amor de que fala é imenso e humilde, vagaroso e progressivo:
"Até para ficar em pé com o filho, /o homem tem que se preparar." É amor
desajeitado, como expressa ("enraiveço /de tanto amor desajeitado") e
como amamos quando amamos sem cobranças de amor maduro (e falso), que
nos faz, mães e pais, com alta prevalência de depressão pós-parto.

Meu Filho, Minha Filha é um livro novo, de uma família nova, recomposta,
reconstituída, repleta de discórdias, desencontros e acusações tal qual
uma família antiga. Contra os solavancos dessa condição - ser réu de
filha, perder-se em críticas, sobrar na dor dos filhos, chamados
feiamente de meio-irmãos - , Carpinejar conta com o antídoto antigo de
propor olhar, empatia, palavra. Assim é que vai achando, a cada verso,
uma nova representação, aproximando a tarefa do poeta à da criança
(Freud), que é brincar, inovar, criar; cria versos inéditos, achando
nome para a dor de tantos pais (homens) que não cessam de procurar,
desesperadamente, o seu lugar: "Eu não te eduquei, não te corrigi em
seqüência, / sou o pai que vai voltar tarde. / Tudo o que ensino / não
tem uma segunda-feira."

A todas essas, Meu Filho, Minha Filha nos conta o que já sabíamos, sem
nos autorizarmos a dizer sob a patrulha dos exigentes: como é difícil
ser pai nessas ou em quaisquer outras condições: "Não há como pedir que
entendas a verdade. / A verdade é passar / fome ou frio na linguagem."
Ao mesmo tempo e sem receitas, essa aprendizagem longa e inacabada passa
por poder contar-se, e o livro conta: "Meus pais brigavam, / a mãe se
trancava no quarto // e o pai se trancava no escritório. / Sentava na
sala entre os dois aposentos / com pavor de tomar partido." Como é
difícil ser pai, olhar o pai que tivemos, separar-se do filho que temos,
que entra na creche, da filha, que entra na adolescência, e o pai
permanece na medida em que suporta ausentar-se, perder, mais adepto das
separações que dos encontros: "Te deixei mais ir do que vir."

E como é difícil ser filho: "Treinei para ser pai. / Queria ser logo pai
/ para deixar de ser filho". Contando é que o filho se esvazia para
ficar repleto do pai que pode ser e é; salta de filho para pai, e a
confissão salta de confissão para poema, porque houve linguagem entre a
empatia e a metáfora (Lebovici), entre o silêncio e a sonoridade. É
quando confessa que nada fez por si - fazia-o pelos pais - até os 25
anos, que se torna livre para ser poeta e pai. E ambas as trajetórias -
a de um pai e a de um poeta - precisam do mesmo caminho, que é brincar:
"Eu te divirto, sem querer", canta, a certa altura, o pai poeta. Entre
empatia e metáforas, ele soube fazer sons e significados que o fizeram
capaz de juntar-se e separar-se de seu filho. E dar lições de apego e
desapego do olhar ao toque: "Não dependo de toda a mão para te manter
perto de mim."

O que mais gosto desse livro é que ele aceita ser triste para
desprender-se da tristeza e chegar no belo, no alegre. Transmitindo a
idéia de que, se olharmos e dissermos com empatia, não há século 21, lei
materna ou gravidez na adolescência, que impeçam ser pai de ser tão
prazeroso como ir à praça ou à arte.

Já no final, Meu Filho, Minha Filha dá novo sentido para quem pensa e
sente a parentalidade. E sugere que quem olhou e contou (com afeto) pôde
filiar-se. Mais ainda: ser pai de um filho que, no sagrado desse ritmo,
há de ser pai um dia.

Que pai e arte autênticos como esses prometem transmissão e duração.
Assim, retornamos ao começo do livro, onde um poeta, mal saído dos 30,
dedica o que criou para os seus netos. E, nessa dança bem-sucedida de
passado, presente e futuro, não está mentindo.

* Psiquiatria da infância e escritor, autor de, entre outros livros, "A
Almofada que Não Dava Tchau!"

(Publicado em Jornal Zero Hora, caderno Cultura, página 03, Porto
Alegre, 11/08/07. Edição nº 15330)

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